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Inesquecível Natal
PUBLICADO POR CARLOSEVANGELISTAJOR ⋅ 30 DE DEZEMBRO DE 2022 ⋅ DEIXE UM COMENTÁRIO

Tags:
Conto, Literatura Natal, Pobreza, Tempos nebulosos,
Carlos Evangelista – Literatura
O barulho parecia de gato vagabundo que derrubou alguma lata no quintal. Uma luz na janela e o grito – Para se não atiro…! Sou ladrão não, moço! Venho com a mulher barriguda e filho. Tem muita chuva e não temos onde dormir. – Vá para a estrebaria e amanhã segue teu caminho!
Noite escura como asa de urubu. Mulher esperando lá atrás, na porteira, envolvida em trapos carregando um saco de roupas. Menino de oito anos chorando. Lágrimas e chuva no rosto. Alguém gritou para nós ir dormir na estrebaria. É nessa direção.
Lá dentro os animais. Palhas e fezes. O garoto caiu no sono. A mulher tira-lhe as roupas encharcadas. Enrola-o com um pedaço de lona velha, seca, encontrada na cocheira. O homem lança-se às palhas, cansado. Acoita a mulher nos braços.
A palha de milho tem cheiro de comida. Maria tem a pele quente. Vontade. Mas ela está buchuda. Tem que ganhar logo esse rebento.
Antes do sono as lembranças: Fugia do patrão que invocou matá-lo para não pagar o trabalho na fazenda. É assim que fazem. O desgraçado trabalha roçando pasto em Boa Esperança da Galiléia e quando é para receber, vem bala. Pobre, mas vivo. Precisava chegar logo na sede do município. Voltaria a trabalhar honradamente como sempre fez. Quem sabe até encontraria um patrão honesto.
Não sabia o que faria na cidade. Talvez conseguisse algum sítio para trabalhar. Depois o povo da cidade fica exigindo que a gente vá votá e seja um monte de números. É documento até para homem que não tem honra. Mas tinha fé que ainda ia vê mulher e o filho comer todos os dias. Joãozinho voltaria a engordar. Maria ia pegar cor de novo, é bonita a caipora. Comida todos os dias. Entrar na cidade não. Lá tem aqueles homens que falam bonito e não gostam de crianças. Esse bichinho não vota. Mais fácil deixar morrer de fome.
Tá tremendo porque mulher? Malária homem! Esqueceu a minha malária. “A minha malária!” O pensamento de posse fez o homem lembrar que está vivo. Maria falava de sua malária como de uma velha amiga. – E agora vem junto a dor, homem. Conheço essa dor. Vai nascer. – Se acalme mulher! – Ai, dói muito! – Manhê, tá chegando o irmãozinho? – Vá dormir garoto. Tua mãe tá parindo.
–Queria vê, pai! Vá dormir. – Dói muito José! Nunca mais quero filho! Nunca mais deixo você fazer. – Calma mulher… respira fundo. Pobreza de merda. Nem uma parteira para ajudar. Não fica aí pensando, homem… Me ajuda que tá nascendo. Tá nascendo.
–É machinho, Maria! – Um irmãozinho, pai?… Maria cochila cansada com o sorriso da Mona Lisa no rosto. José respira vendo os restos de placenta do bebê. Acaricia a carne tenra com as mãos ásperas. Risca o binga. Deixa a chama lamber a peixeira. Três dedos a partir da barriga. Um talho só, no cordão umbilical. Amarra com fio de palha. Enrola o rebento em trapos. Coloca no seio da mãe. Maria quer dormir. Feliz Natal, José!
–Natal? – Faz 2000 anos que Ele nasceu. É Natal, Maria! Maldição! É Natal!
Joãozinho admira. Nunca o pai tinha falado assim desse seu Natal. Já sei Maria. Vou chamar o menino de Natal. Não, de Jesus. Cristo, é isso mesmo! Jesus Cristo pra dar sorte. Maria consente com sinal da cabeça. Dorme. Medo de outro ataque de malária. – É Natal, murmura José. Que chuva! Vai se chamar Jesus Cristo. E vai ter mais sorte. Quem sabe até aprenda a lê…
–Paiê… O piá tá morto…!
Carlos Evangelista é jornalista e especialista em Sociologia Política (UFPR). Este texto reflete as opiniões do autor. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.