Carlos Evangelista

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Desejos Incubados

PUBLICADO POR CARLOSEVANGELISTAJOR ⋅ 29 DE JUNHO DE 2022 ⋅ DEIXE UM COMENTÁRIO

Tags:

Contos, Entretenimento, Prosas, Lampejos, Literatura.

Carlos Evangelista – Contos

No ritual quase mecânico de todos os santos dias, Eugênio

perdia a cada despertar o prazer de encarar a lida diária na roça,

fosse em tempo de preparação da terra, plantio, colheita ou

comercialização da safra.

Desde rapazola sempre quis largar tudo aquilo e conhecer

uma grande cidade e lá prosperar, construir família e estabilidade

financeira. Mas o implacável tempo não espera pelos indecisos e

segue avante.

Eugênio, já beirando os trinta anos, solteiro e leigo por

demais das coisas da cidade, começava se questionar do porquê

daquela vidinha boa, mas besta da cidade pequena. Queria ter ao

menos a oportunidade de enfrentar um grande desafio em busca

de uma vida melhor. – Pôxa, aqui fui criado, sempre trabalhei

duro, parei de estudar tão logo conclui o ensino médio. Nunca me

apaixonei por nenhuma das poucas namoradas que tive. Já que a

minha verdadeira amada, nunca sequer quis trocar algumas

palavras comigo. Cansei de correr atrás de bola, ser assíduo

frequentador da igreja, jogar em bingos, etc. Desejo algo maior

pra mim. Aqui nada sou. Meus talentos nada significam.

Perspectivas de crescimento como ser humano praticamente

inexistem. Claro, tenho a minha família honesta e honrada. Porém

preciso seguir a minha própria direção buscando a realização dos

meus sonhos. Não é justo, talvez por covardia, permanecer socado

nesse lugar, sem nada saber da vida que tanto falam da cidade

grande.

Já sei, venderei meus porcos, minhas vaquinhas e semana

que vem parto para Curitiba. É inadmissível morar trinta anos no

Paraná, onde nasci e não conhecer a propagada e bela Capital

Ecológica. Deus há de bem conduzir os meus passos.

Passagem comprada, mala arrumada, coração saltitante,

recomendações mil, desejos, desejos e desejos, despedida em

lágrimas.

Anoiteceu na fronteira com o Paraguai e amanheceu na

rodoviária de Curitiba. Meio assustado por causa de tanto barulho,

ruas largas, prédios altos e gente que nunca acaba. Porém sem

parentes, referências ou objetivos concretos sobre o que fazer ali,

Eugênio caminhava a ermo em busca das descobertas sonhadas.

Na pensão onde morava, diariamente lia a Gazeta do Povo,

referência para conhecer os mais exuberantes e históricos lugares.

Eugênio ficou deslumbrado ao conhecer a Catedral Nossa

Senhora da Luz. Ali rezou silenciosamente. Ao sair do Santuário

admirou o marco zero da Capital, fincado na Praça Tiradentes.

Subiu a ladeira para ver de perto o famoso Largo da Ordem e as

ruínas do Mosteiro de São Francisco.

Empolgado, nos dias seguintes conheceu a Universidade

Federal do Paraná, o Palácio das Artes, bebeu café na boca

maldita, visitou a Biblioteca Pública do Paraná, foi a Praça Rui

Barbosa, andou de vermelhão, conheceu o Aeroporto Afonso Pena,

assistiu um espetáculo no Teatro Guaíra, foi ao Estádio Couto

Pereira, assistindo também uma partida de futebol na Arena da

Baixada e costumeiramente fazia cooper no Jardim Botânico.

Eugênio não se cansava, comeu pipoca no Passeio Público,

andou de ligeirinho de São José dos Pinhais à Barreirinha. Foi ao

Bosque do Papa, seguiu a pé até a Pedreira Paulo Leminski,

retornando pelo Centro Cívico, para contemplar o Palácio Iguaçu e

na Assembleia Legislativa prestigiou uma sessão no plenário

daquela casa de leis.

No roteiro minuciosamente preparado para conhecer a vida

noturna da cidade, em pleno inverno, era preciso adequadas

roupas e razoáveis reais disponíveis.

Meses depois, Eugênio já se dava por abastecido em termos

culturais na cidade grande e encarou um modesto trabalho de

balconista que exigia dele muita correria, riscos e estresses, o que

na sua opinião não compensava pelo parco salário no final do mês.

Desiludido e carente de uma vida menos sedentária, fosse onde

fosse, Eugênio planejava conhecer uma nova capital do Sul do

Brasil, quando de repente despertou do sonho em sua modesta,

mas aconchegante casa do sítio, com o frequente mugido das

vacas, avisando-o da hora da ordenha.

Carlos Evangelista é jornalista e especialista em Sociologia Política (UFPR). Este texto reflete as opiniões do autor. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

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