Carlos Evangelista

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UMA ESCOLA NUM CURRAL

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Carlos Evangelista – Literatura- conto

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Banalização da educação, Conhecimento, Descaso, Educação, Educador, Luz da Vida

De uma transação imobiliária, em 1975, seu Manoel Maia tornou-se proprietário daqueles dez alqueires de terras férteis, numa gleba chamada Boa Esperança, distante não mais de quarenta quilômetros da barranca do Rio Paranazão, no Noroeste do Paraná. A terra era boa, mas de quiçaça de baixo a cima. Disposto a valorizar o imóvel, seu Manoel, homem corajoso, trabalhador e ambicioso, pegou a esposa e a escadinha de oito filhos e se embrenharam no sítio, que possuía uma casa modesta, boa nascente d’água e muita benfeitoria por fazer.

Com os filhos em idade escolar, o negócio era contratar os serviços de terceiros, sendo muito comum num dia de sol, seu Manoel comandar dez a vinte peões dos bons de enxada; todos cientes de que o trabalho não era mole e o serviço deveria ser bem feito, caso contrário para o dia seguinte o camarada estaria dispensado da diária.

Na parte da tarde, após as aulas, era até bonito ver tanta gente trabalhando, principalmente os adolescentes que executavam as tarefas com perfeição e não tão lentamente. Para cada um daqueles onze filhos do seu Manoel estava reservado um destino, mas enquanto estivessem sob a guarda e às asas do pai, a educação e o trabalho seriam com ele, sem direito a contestações. Diante das condições difíceis, a rotina diária dos filhos consistia em levantar às cinco horas da manhã, tratar dos animais, tomar café de brasa com açúcar, comer bolo de fubá, ou mandioca com ovo e ir a pé para a escola distante seis quilômetros de casa, lá permanecendo até ao meio dia, para em seguida retornar para a casa, almoçarem a comida já reservada pela mãe, pegarem as ferramentas e arribarem ao canteiro de trabalho até às seis ou sete da noite, quando então tomariam banho na bica, jantavam, faziam as tarefas, rezavam e cama. No dia seguinte tudo começava outra vez.

Com os seus quatorze anos de idade e cursando a oitava série ginasial, João Carlos, menino franzino, mas lépido, já acompanhava os adultos nas tarefas da lavoura. Sempre retraído nas conversas dos grandes, João Carlos, numa tarde daquele verão de sol escaldante, atirou longe a enxada e se propôs discutir com o seu pai um assunto que há muito vinha matutando sua cabeça.

__Por que você jogou a enxada, menino? ___Era o seu Manoel interrogando o filho, diante da sua estranha atitude e se a resposta não fosse digna de convencimento, seria encarado como brincadeira e consequentemente o garoto estaria sujeito a uma surra, ali mesmo diante de todos, pois seu Manoel não admitia brincadeiras em horário de trabalho, principalmente quando se tinha gente de fora. O jovenzinho tirou o chapéu de palha, enxugou o suor do rosto e disse alto: ___Eu não quero mais trabalhar na roça, pai!

___Ah, não! E o que o senhor pensa em fazer seu João Carlos?

___Eu quero ser professor! Exclamou.

Aquela resposta ao pai quebrou um pouco a tensão do diálogo, observado por todos que ali trabalhavam, pois João Carlos estava a uma distância de uns vinte metros do pai, que capinava um matagal por entre as ruas de café ainda pequeno. Por isso tinha quase de gritar para ser bem entendido. Alguns riram da ousadia de João Carlos.

______E você lá é gente pra ser professor, menino?

____Sou gente sim…

____Explica isso direito, rapaz! Aproximando-se do filho, já bravo.

____Se o pai concordar pretendo, em mutirão, construir uma escolinha na cabeceira do sítio do seu Arlindo. Ele já permitiu. Objetivo é encurtar a distância até a escola mais próxima. Quem vai ganhar com isso são as crianças e as famílias.

____Digamos que concordo. E daí?

___Daí que vou conversar com outros pais de crianças que estudam no povoado e ver se eles topam nos ajudar nessa ideia.

___E quem vai comprar a madeira, telha, enfim, tudo que precisa para se construir uma… escola como você disse?

___Cada um dá um pouco e avaliaremos a possibilidade da construção.

___E você sabe como é ser professor?

___Não é professor de verdade não pai. Quero apenas ensinar as crianças a ler e escrever sem precisar percorrer diariamente doze quilômetros até a escola do distrito. E se der tudo certo, pretendo ensinar as pessoas adultas a escreverem ao menos o nome. No começo, nem salário eu quero.

Os demais trabalhadores fizeram um círculo, atentos a conversa, até que seu Manoel pediu opinião a alguns deles que aprovaram de imediato. Inclusive dentre eles havia um pai que tinha cinco filhos analfabetos e se propôs ajudar no que estivesse ao seu alcance. Seu Manoel pensou… pensou e finalmente disse: ___Bom, a ideia não é de toda má, se os outros concordarem com o seu projeto e se você acha que poderá dar conta do recado sem decepcionar aqueles que porventura confiarem em você, concordo.

___Eu sabia que o pai iria concordar! A expressão de felicidade tomou conta de João Carlos, que apanhou a enxada e saiu na disparada, para espalhar a autorização do pai.

A todos explicava detalhadamente o seu projeto e marcava uma reunião para o próximo sábado a tarde no local da futura escola. No dia do encontro, após explicações e anotações das possíveis doações e voluntários para a construção, o saldo foi positivo e já no domingo compareceram muitas pessoas para o serviço de limpeza do terreno, nivelamento e alicerce de acordo com a aprovação dum bom carpinteiro, já conhecido na gleba.

O projeto se resumia num salão de dez por oito metros, sendo três metros e meio de altura, mais uma casinha de quatro por três metros, para depósito de materiais de obras, limpeza, além de uma cantina que também precisava ser construída. Também precisava ser construído um poço coberto, sanitários masculino e feminino e uma fossa séptica, mais retirada do corpo da escola.

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Com o empenho dos voluntários, em cinco finais de semana ficou pronta a construção. O problema agora era as carteiras e os assentos que não demorou muito para alguém sugerir bancos duplos de madeira, fixados em sequência, subdivididos em duas alas, sendo reservado espaço para o corredor. Logo após, a sugestão de se construir uma espécie de balcão, meio metro mais alto e mais largo que os bancos. Estava pronta a escola, equipada com assentos e bancadas. Não se sabe de onde apareceu um quadro negro e várias caixas de giz. Até giz colorido tinha. A mesa do futuro professor era também de madeira rústica. Até um campinho de futebol foi ajeitado nas imediações.

O dia da matrícula foi anunciado e não mais que oito alunos foram matriculados. No primeiro dia de aula compareceram três alunos. No segundo dia aqueles três faltaram e vieram outros dois. Alguma coisa estava errada, pensava João Carlos, que ali permanecia o dia todo no aguardo de um possível aluno. Nada de alunos. Era preciso detectar o porquê do não comparecimento das crianças. Será que eles não confiam em mim? Mas se fosse isto, os pais não teriam ajudado na construção… e porque nem aqueles que se matricularam compareciam? Tudo era uma incógnita para o jovem “professor”.

Decorridos cinco dias, sem alteração do quadro de frequência João Carlos sonhou que explicava à Deus e indagava a razão daquela decepção. Acordou cedo, pegou um cavalo e foi a cidade pedir ao padre para ir rezar e abençoar a nova escola, o que foi prontamente aceito pelo vigário. Com a hora acertada para a reza da missa, no sábado subsequente. Voltou a galope para a escola, onde havia cinco alunos no seu aguardo.

Após uma aula improvisada, o “professor” comunicou às crianças o dia e hora que seria rezada a santa missa na escola e era para avisar a todos. Um comunicado foi afixado na porta da escola e a notícia da missa correu na comunidade.

Mais de duzentas pessoas participaram da missa e o padre, durante a homilia falou da importância da educação no desenvolvimento das pessoas, citando os educadores Paulo Freire, Darcy Ribeiro e enaltecendo a iniciativa do jovem João Carlos. Ao final da oração pregou um relógio na parede e um crucifixo de madeira foi ajeitado próximo ao quadro negro, além de jogar água benta por todos os cantos e dependências da escola.

Na segunda-feira, para a felicidade de João Carlos, compareceram de manhã, Setenta e quatro crianças, que após serem matriculadas, foram subdivididas em dois turnos multiseriados. João Carlos lecionou sozinho durante quase cinco anos. Ao completar dezoito anos de idade, o professor foi se alistar, quando muitos dos seus alunos já estavam bem adiantados, incluindo as pessoas adultas matriculadas no Mobral para as aulas no período da noite, sob a luz de lampião à querosene. Lecionar era a paixão de João Carlos, agora reconhecido e registrado na prefeitura como professor rural. O salário sempre atrasado era pago esporadicamente, ainda assim João Carlos não reclamava e seu prazer era perceber o interesse dos alunos na busca de conhecimento, inclusive com atividades extraclasse, como incentivo a criação de artesanato, estímulo a construção de instrumentos musicais, práticas esportivas, como tarefa de casa, as vezes pedia para que os alunos ouvissem e fizessem um resumo da Voz do Brasil, incentivava a produção de poesia, composição musical e uma vez por semana como incentivo a leitura, todos deveriam ler parte de um livro que era doado para a escola. O local era sempre limpo, com muitas flores e árvores frutíferas ao redor do estabelecimento escolar, carinhosamente zeladas pelos alunos.

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Surpreendentemente João Carlos foi convocado para o serviço militar. Na sua ausência fora designada uma professora da comarca trazida todos os dias de Kombi da prefeitura, mas que logo comunicou a secretaria municipal da educação sobre a forma autônoma de ensinar do ex-professor, bem como os parcos recursos materiais existentes na referida escola. Uma equipe da prefeitura inspecionou as instalações e alegou que o projeto daquela construção não estava nos padrões da secretaria e solicitou a desativação da escola.

Dois anos se passaram e quando João Carlos certa feita retornou do quartel, soube logo da demolição da escola, ainda assim foi até o local e ali, fardado, chorou demoradamente ao ver um grande curral, onde funcionava a saudosa escola de histórias muitas.

Carlos Evangelista é jornalista e especialista em Sociologia Política (UFPR). Este artigo/texto refletem as opiniões do autor. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

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